Um estudo realizado pela professora Adriane Antunes, do curso de Nutrição da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), permitiu a obtenção de um leite desnatado que é, ao mesmo tempo, pasteurizado, microfiltrado e deslactosado (com redução de 90% ou mais da quantidade de lactose original) e que, além disso, possui estabilidade por até 50 dias – o prazo normal fica entre 3 a 5 dias. O produto obtido por este somatório de tecnologias é inovador e inexistente, tanto no Brasil como em outros países. Os resultados da pesquisa foram publicados com destaque no Journal of Dairy Science, da Associação Americana de Laticínios.
A pesquisa, desenvolvida em parceira com pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital) de Campinas, associou três técnicas já existentes: a microfiltração, a pasteurização e a quebra da lactose (açúcar do leite responsável por intolerância alimentar em mais de 65% da população mundial de adultos). Foram realizadas análises físico-químicas, microbiológicas e sensoriais, estas últimas com a participação de 24 provadores durante todo o período da pesquisa. Eles analisaram cor, doçura, sabor, adstringência, amargor e acidez do produto armazenado sob refrigeração por 50 dias, para constatar até quando o leite se mantinha adequado para o consumo.
Adriane explica que a microfiltração é uma tecnologia que pode ser considerada como uma esterilização a frio. «O leite é forçado a passar sob pressão por uma membrana de cerâmica e, durante esta passagem, os micro-organismos e seus esporos são retidos. Esta técnica, portanto, não emprega calor para a inativação microbiana, mas sim uma barreira física, o que permite preservar as características sensoriais e nutritivas do produto», esclarece. No Brasil não é permitido a venda de leite embalado não pasteurizado (diferentemente do que acontece, por exemplo, na França, onde se comercializa leite microfiltrado cru). Por esse motivo, e para ampliar ainda mais a validade do produto, o grupo de pesquisa optou por associar a microfiltração com a pasteurização. Esta última é um processo térmico que submete o leite a uma temperatura de 62 graus por 30 minutos (pasteurização longa) ou 72 graus por 15 segundos (pasteurização curta). «Este tratamento elimina agentes biológicos que podem causar doenças, mas o leite pasteurizado mantém uma microbiota com capacidade de resistir ao calor. Estas bactérias continuam vivas e, apesar de não fazerem mal à saúde, vão estragar o produto, que então dura pouco, em torno de 5 dias», afirma a pesquisadora.
No Brasil, o tipo de leite mais comercializado atualmente é o UHT (conhecido como «leite longa vida» e que recebe um tratamento térmico intenso – entre 130 a 150°C por 2 a 4 segundos, permitindo que o produto tenha validade de cerca de 4 meses). Os intolerantes à lactose encontram no mercado atualmente apenas a opção de leite deslactosado obtido por UHT.
No entanto, como explica Adriane, depois de aberto, a cor do produto sofre modificação apresentando-se mais escura e escurecendo ainda mais nos dias subsequentes. Ela pontua que algumas marcas comerciais apresentam esse escurecimento mesmo antes de o produto ser aberto. «Essa cor mais escura pode ser responsável pela rejeição do produto por alguns consumidores. Pensamos então em fazer a associação de tecnologias e resolver também esta questão da cor do leite deslactosado obtido por UHT, permitindo a obtenção de um produto interessante do ponto de vista nutricional e sensorial e que apresentasse vida estendida», afirma.
A máquina utilizada pelos pesquisadores para a microfiltração do leite, importada da França com verba da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), é um equipamento que pertence ao Ital e que custa cerca de R$ 180 mil. Atualmente, nenhuma empresa brasileira de laticínio utiliza o sistema com a finalidade de obter leite de validade estendida.
Adulteração, consumo e mutação
De acordo com Adriane Antunes, existem atualmente movimentos contrários ao consumo de leite e derivados por diferentes motivos, tanto filosóficos (o ser humano seria o único mamífero que consome leite ao longo da vida) como fisiológicos (intolerância à lactose, alergia às lactoproteínas, desordens genéticas no metabolismo da galactose, etc). Segundo ela, somam-se a estas polêmicas as constantes fraudes às quais o leite tem sido submetido. «É fato que grande parte dos consumidores de leite pertence a grupos vulneráveis como crianças, gestantes e idosos, o que tornam as fraudes ainda mais graves, ainda que sejam inaceitáveis, independemente do público e fase da vida em que o leite é consumido», declara.
Sobre as recorrentes denúncias, ela acredita que sempre houve adulteração do produto no país, embora agora tenhamos mais notícias devido tanto ao aumento do controle de qualidade como ao aumento do número de denúncias. A docente explica que o leite é um produto muito fácil de ser adulterado, por ser líquido e por poder ser misturado perfeitamente com água. «Várias são as fraudes que têm se observado, desde adição de água até emprego de substâncias químicas. Este é um grave problema e deve ser combatido de forma exemplar e definitiva».
Quando perguntada se pessoas adultas deveriam continuar tomando leite, já que, como informa o artigo, 65% da população mundial de adultos apresenta algum grau de intolerância à lactose, Adriane explica que, geneticamente, a grande maioria dos seres humanos é capaz de secretar a enzima necessária para quebra do açúcar do leite apenas na primeira infância. Depois do desmame, a produção da enzima lactase (que digere a lactose, o açúcar do leite) tende a diminuir. No entanto, ao longo da história humana, alguns indivíduos desenvolveram uma mutação genética que lhes permitiu continuar com a capacidade de digerir o leite. «Isto se deu devido ao fato de algumas populações terem domesticado o gado para comer a carne. Em algum momento, passaram a beber o leite, para matar a fome ou até mesmo por escassez de água. Algumas mães, vendo que seu leite secava, passaram a dar o leite da vaca para seus filhos. Além disso, quando o leite de vaca era armazenado em marmitas de barro ou em bolsas feitas com estômago de bezerro acabavam virando respectivamente iogurte e queijo, produtos que agradaram o paladar de nossos ancestrais. Tais fatos favoreceram o início de uma relação do homem com o leite», coloca.
A mutação ocorreu em diferentes partes do mundo e por eventos genéticos independentes. O gene que determina que a enzima lactase permaneça sendo produzida na vida adulta é herdado por gene autossômico dominante e, assim sendo, é facilmente transmitido entre diferentes gerações. Adriane acredita que a adaptação do homem ao consumo de leite possivelmente garante benefícios evolutivos à espécie. «Por isso a natureza tem optado por tornar cada vez mais frequente esse padrão genético».
Ela também afirma que, como o ser humano está vivendo mais, há uma variação de fatores que apontam que é recomendável ter boas fontes de cálcio na dieta para conter os riscos aumentados de osteoporose. «E as melhores fontes de cálcio continuam sendo o leite, os queijos e os iogurtes. Embora haja outras fontes, como as folhas verdes, a quantidade de consumo teria que ser muito maior do que a habitual para suprir a quantidade recomendável».
Unicamp