As proteínas do soro do leite (PSLs) constituem um suplemento nutricional bastante familiar aos esportistas. Chamadas genericamente de whey proteins (nome em inglíªs), são vendidas com diferentes marcas e apresentações. Graças í riqueza em aminoácidos de cadeia lateral ramificada (branched-chain amino acids ou BCAAs) – aminoácidos essenciais que os seres humanos não conseguem sintetizar, devendo obter por meio da dieta –, as PSLs são amplamente utilizadas para promover o crescimento e estimular a produção de massa muscular. Tal propriedade também faz delas um complemento nutricional para pessoas em condições patológicas de depleção da musculatura.
As PSLs tíªm também funções anti-hipertensiva e antiulcerosa. Essas funções já eram conhecidas na literatura. Descobriu-se agora, em pesquisas com ratos, que duas outras propriedades benéficas se acrescentam quando as proteínas de soro de leite são previamente hidrolisadas por meio de enzimas (isto é, parcialmente decompostas em peptídeos – cada um deles formado por dois ou mais aminoácidos): um efeito de redução da hiperglicemia e um efeito de proteção celular e minoração do estresse.
Tais descobertas foram feitas no Laboratório de Fontes Proteicas da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Lafop-Unicamp), em tríªs projetos de pesquisa coordenados por Jaime Amaya Farfan com o apoio da FAPESP: “Efeito do consumo de hidrolisado do soro de leite no metabolismo energético e estado redox em ratos exercitadosâ€; “Efeito do consumo das proteínas do soro do leite nos biomarcadores HSP e parí¢metros bioquímicos em ratos†e “Efeito do consumo das proteínas do soro de leite intactas e hidrolisadas, nos transportadores de glicose 1 e 4 do ratoâ€.
A equipe liderada por Farfan, que incluiu os pesquisadores Pablo Christiano Barbosa Lollo (doutorado), Priscila Neder Morato (doutorado), Carolina Soares de Moura (mestrado) e Luciana Nisishima (iniciação científica), publicou, em 2013, dois artigos na revista Food Chemistry: “A dipeptide and amino acid present in whey protein hydrolysate increase translocation of GLUT-4 to the plasma membrane in Wistar rats†e “Whey protein hydrolysate enhances the exercise-induced heat shock protein (HSP70) response in ratsâ€. E produziu outro, “Whey protein hydrolysate increases translocation of GLUT-4 to the plasma membrane independent of insulin in Wistar ratsâ€, prestes a ser publicado na PLoS One.
O poder das proteínas de soro de leite hidrolisadas (PSLHs) de ativar a utilização da glicose também foi descrito por um grupo de pesquisadores japoneses, depois de ter sido observado e relatado pela equipe da Unicamp.
“Os experimentos indicam que a ingestão de proteínas do soro de leite, especialmente de proteínas de soro de leite hidrolisadas [PSLHs], promove a utilização da glicose sanguínea e a síntese de glicogíªnio nos músculos esquelético e cardíaco. Daí seu efeito anti-hiperglicíªmico, de combate ao diabetes ou ao pré-diabetesâ€, disse Farfan í Agíªncia FAPESP.
A hiperglicemia é caracterizada por níveis elevados de glicose no sangue, da ordem de mais de 100 miligramas por decilitro. “No diabético ou na pessoa que está com hiperglicemia, já a caminho do diabetes, a taxa de glicose no sangue não baixa com o metabolismo, geralmente porque ou falta insulina ou o transportador principal da glicose (GLUT-1) não funcionaâ€, explicou Farfan.
“As PSLHs, então, propiciam uma via alternativa para a retirada da glicose da circulação e sua introdução nas células, para gerar energia ou para ser armazenada na forma de glicogíªnio [polímero, formado por sucessivas moléculas de glicose, estocado no fígado e nos músculos]â€, disse.
Essa “via alternativa†consiste na ativação do transportador de glicose-4 (GLUT-4). “As moléculas de GLUT-4 repousam em vesículas intracelulares. Ativadas, elas migram para a membrana plasmática, tornando-se disponíveis para captar a glicose presente no meio circulante e transportá-la para o interior das célulasâ€, disse Farfan.
A função de ativação dos GLUT-4 é típica dos exercícios físicos. Mas o experimento mostrou que, com a ingestão de PSLHs, pode ocorrer também em condições de sedentariedade.
“Sem a intenção de desestimular o exercício em pessoas ativas, essas proteínas se projetam como possível alternativa para o manejo da hiperglicemia em indivíduos que, por sua condição de saúde, estão impedidos de praticar atividades físicas, pois o efeito se mostra tanto substitutivo quanto aditivo ao produzido pelo exercícioâ€, disse Farfan.
Nos experimentos com ratos, o pesquisador e seus colaboradores constataram que os animais alimentados com caseína [proteína insolúvel do leite, cuja retirada dá origem ao soro] ou PSLs comuns também ativaram uma certa quantidade de GLUT-4. Mas aqueles alimentados exclusivamente com PSLHs mobilizaram quase o dobro.
“A hiperglicemia é extremamente nociva, porque significa ter uma quantidade muito grande de um reagente químico em circulação no sangue. A glicose é um aldeído. E, como tal, tende a modificar quimicamente as proteínas, receptores e outras moléculas com as quais entra em contato. Modificadas, essas moléculas deixam de funcionar corretamente. Dificuldade de cicatrização, fígado gorduroso e cirrose são algumas das consequíªnciasâ€, afirmou Farfan.
Atividade de proteção celular
Quanto í propriedade de proteção celular, que pode estar associada ao efeito anti-hiperglicíªmico, ela se deve ao estímulo que as proteínas de soro de leite, e mais ainda as proteínas de soro de leite hidrolisadas, produzem sobre a concentração das proteínas endógenas de proteção, as chamadas heat shock proteins, ou HSPs.
As HSPs compõem um mecanismo natural de defesa, capaz de proteger e reparar danos causados í s estruturas de natureza proteica. Elas conferem í s células maior tolerí¢ncia e resistíªncia contra uma série de agentes agressores, garantindo a sobrevivíªncia celular durante períodos de estresse.
“Certas condições de estresse chegam a provocar a perda da conformação original e da funcionalidade de proteínas muito sensíveis, como os receptores e os transportadores. Dada a sua constante vigilí¢ncia sobre a conformação correta de polipeptídios e proteínas, as HSPs são também conhecidas como chaperoninas (em analogia ao nome dado í s damas de companhia). Os aumentos no conteúdo ou na expressão das HSPs conferem citoproteção e favorecimento ou restauração do equilíbrio homeostáticoâ€, disse Farfan.
Antes de chegar í explicação envolvendo as HSPs, os pesquisadores constataram que os animais mantidos durante longo período com dieta exclusiva de proteínas de soro de leite hidrolisadas conservavam todos os parí¢metros normais, menos em relação a uma enzima, que se apresentava diminuída: a glutaminase.
“Pesquisando toda a literatura, vimos que essa redução da glutaminase era um bom indício, pois a glutamina é a principal fonte de energia para os intestinos. Era de se esperar que animais submetidos a estresse causado pelo exercício físico tivessem a glutaminase aumentada, por causa da maior demanda dos intestinos. O fato de a glutaminase estar diminuída sugeria que os ratos alimentados com PSLHs estavam muito menos estressados pelos exercícios exaustivos do que os outros gruposâ€, disse Farfan.
Essa sugestão foi confirmada pelo monitoramento dos hormí´nios relacionados ao estresse. E, a partir daí, os pesquisadores passaram a investigar as HSPs, as proteínas do estresse e do antiestresse.
“Vimos que existe um efeito parecido ao observado com o GLUT-4. Ou seja: o exercício produz uma certa quantidade de HSPs e a dieta com as proteínas hidrolisadas também. Quando se combinam as duas coisas, os efeitos se complementam. Assim, encontramos uma explicação para o efeito antiestresseâ€, afirmou o pesquisador.
A propriedade citoprotetora das PSLHs explica seu efeito antiestresse em animais exercitados até a exaustão, que apresentaram rendimento no trabalho físico muito superior aos alimentados com caseína ou mesmo com PSL. Ao mesmo tempo, a propriedade de ativação dos GLUT-4 explica seu efeito poupador do glicogíªnio muscular nos animais levados í exaustão e de estímulo í síntese e acúmulo de glicogíªnio nos sedentários.
“Com o uso da técnica de westernblot [método analítico utilizado para detectar proteínas em uma amostra], comprovamos que as PSLHs, ainda mais do que as PSLs, são capazes de promover os transportadores GLUT-4 do interior das células para as membranas celulares, que são os seus locais de ação. Assim, e cercando os achados com testes de inocuidade quanto í segurança do consumo prolongado das proteínas hidrolisadas, sugerimos que elas podem acionar o transporte da glicose e a sua utilização, da mesma forma que o exercício físico o fazâ€, disse Farfan.
Em sequíªncia ao estudo, os pesquisadores agora pretendem estudar os efeitos das PSLHs nos humanos.
Agíªncia FAPESP
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